Vniversale descrittione di tvtta la terra conoscivta fin qvi

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fantasia Noturna

Eu levantava da cama no meio da noite, e cambaleava de pijama pela casa, aos poucos, ia descendo a escada, pé depois pé, com medo de acordar os adormecidos. A porta estava aberta e eu corria para fora, como um escravo que ansiava liberdade. Rondeava por uma praçinha no centro, e procurava alguma viva alma, algum conhecido, um cachorro, um amigo que me oferecesse um cigarro e propusesse alguma filosofia vagabunda, qualquer coisa. Caminhava pela escadaria da igreja, que de noite ficava cor de abóbora.. E que noite fazia, fria e seca, e eu, como um viajante esquizofrênico, a lagartear de pijama pelas ruas. Ao lado da igreja, o imenso colégio, lugar onde estudei desde a minha infância até meses atrás.

Me vi entrar pela porta principal daquela enorme construção. Lá dentro, tudo completamente escuro, mas eu parecia não precisar saber por onde andar, alguma coisa me prendia e mostrava o caminho, algo me controlava como marionete. O silêncio era absoluto, não ouvia meus próprios passos. Olhei para o chão e tudo se explicou, meus pés pairavam a mais ou menos dez centímetros do chão, e eu ía flutuando por corredores e escadas íngremes, pra chegar sabe se lá aonde. Os relógios não me diziam as horas, mas com certeza já era mais de meia-noite. Aquele passeio soturno se extendeu por mais alguns minutos, enquanto por mim passavam portas, quadros, janelas, armários, até que tudo parou.

Me vi congelado na entrada de um enorme salão. Já não sentia mais o silêncio, alguma coisa vinha de longe e susurrava aos meus ouvidos. Por ali, nada eu podia enxergar, até que, aos poucos, pude abrir os meus olhos. Continuava tudo tão escuro e deserto, ainda que agora eu pudesse contemplar as paredes, o palco, a cortina e as cadeiras contornadas pela luz sutíl que entrava pelas janelas lá no alto. Meu corpo voltava à vida terrena, meus pés pisaram em um carpete frio e meus membros ganhavam movimento outra vez. Não precisei de muito tempo para desvendar aquele sussurro, era a mais bela música que eu já havia ouvido. Ela me conduzia ao seu encontro, cada vez mais mais perto, já podia sentir, de fato, as vibrações que me atingiam. Não precisava saber quem estava a tocar, e não podia saber, ali de perto, só podia contemplar uma silhueta corcunda que caía sobre as teclas do piano, desafinadíssimo e com o som abafado.

Era uma melodia identificável encaixada na mais perfeita harmonia que poderia existir, de andamento lentíssimo, e me fazia recordar a vida de anos atrás, das primeiras experiências, dos amores platônicos, dos amigos que ficaram, dos projetos jogados fora. Ah, e como lembrava, aos poucos, ia conduzindo, caía numa exagerada melancolia e eu sabia de onde vinha; tempos de confusão e desentendimentos, de desespero e da necessidade que tínhamos de viver, sem saber o quê e qual era o sentido da vida, dos dias, dos fins de semana que pra um ou outro tornavam-se torturas passageiras... Uma pausa, breve, e o silêncio absoluto volta. Aquela pausa, sem mais nem menos, expressava o momento de agora, deitado naquele palco de madeira, a relembrar e julgar as minhas ações e virtudes do passado. Saiu de mim um pequeno gemido de insatisfação, e aquela melodia esquisita vinha à tona mais uma vez, e dessa vez não me fazia lembrar de tempos passados, e nem expressava o momento, mas aquela melodia me fazia sonhar.

Eu sonhava feito criança. Me imaginava daqui um, dois, três, dez anos. Um provável desiludido, os dogmas de hoje jogados no lixo, ou um sortudo, um reflexo da imagem perfeita que eu criava. E sonhei tanto, encarando o teto pálido do salão, que de maneira alguma pude conter de voltar à infância, em um dia qualquer, naquele mesmo palco, com a mão presa em uma das cortinas. A professora nos dava as instruções para a nossa primeira peça de teatro, "O Mágico de Óz". Torcia para ser sorteado à interpretar um personagem importante. Todos os outros colegas ansiosos, alguns tímidos e medrosos, outros confiantes. Certamente torcia para contracenar com aquela menina adorável. Fiquei com o papel do Homem de Lata, e feliz com isso; depois de contar pra mãe, que caprichou e montou uma fantasia memorável: minhas articulações eram simplesmente fechadas por caixotes de papelão, o que me garantia um movimento duro e desengonçado. No dia da apresentação, não conseguia me abaixar para juntar uma das vassouras no palco, o nervosísmo havia me pegado de jeito. De repente, a música parou de novo. Com a cabeça pesada de tanta memória, questionei a interrupção, levantei do chão e senti uma dor incômoda nas costas. Nesse momento, sobre a banqueta do piano, não havia ninguém.

Talvez já estivesse na hora de voltar pra casa, pensei. Ou talvez não fosse tão necessário, uma piscada e outra, e não havia mais palco, nem colégio, nem música, nem igreja, nem a fantasia incômoda do homem de lata. Havia a cama, as cobertas, o barulho da chuva... era só mais um dia úmido que estava apenas começando.





Arthur Wilkens

7 comentários:

Nathália disse...

O que você presenciou foi uma viagem astral pela 5º dimensão (mundo dos sonhos) / sonho onírico

ps. não entendo a fascinação de vocês( arthur e gabriel) por esse tipo de tema ( noite, sonho, morte, assuntos estranhos).

Juliane Santos disse...

achei envolvente

gen. disse...

Os posts do Arthur Wilkens são sempre os melhores, venho nesse blog só para lê-los. Esta crônica está ótima, melhor do que muitas que se lêem nos jornais. Você já escreveu algum livro?

Nathix disse...

Juliane, estou esperando a continuação da teoria dos OVNI's

faz uma teoria sobre 2012 também :)

Juliane Santos disse...

2012? não parei pra pensar sobre isso.. vou ver então

Arthur Wilkens disse...

Oi gen.! Que bom que você gostou do meu texto, é interessante saber que há pessoas que, mesmo omitidas, acompanham o blog =) E quanto a mim escrever um livro; bem, eu já tentei uma vez, mas já faz um tempo (juntamente com o Gabriel, contribuidor) e, francamente, a história não estava fluindo bem. Se quiser ler mais alguns textos meus recomendo meu blog: www.portapoesia.blogspot.com
E não deixes de comentar! rs

Arthur Wilkens disse...

gabriel, isso não é engraçado, mesmo..