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quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Pele


Depois de anos, suas peles haviam colado e ficara difícil de separar. Doía, sempre, que constantemente um ou outro forçava de ir para um lado contrário. Tentaram, inclusive, entrepassar uma faca; provaram de morfina, e ao que passava o efeito a dor voltava. Foi caso, de outrora, terem escondido um ao outro sob a roupa, a evitar constrangimentos. Chegou uma hora e não houve jeito, procuraram um médico. Disse o médico que a solução seria simples: anestesia geral, bisturi, e repouso. Hesitaram, de susto, ao que parecia simples e resolvível como nunca fora antes. Concordaram, por fim, e de resto só houve silêncio. Silêncio pelos dias que se arrastaram, por horas, por minutos, até que o médico adentrou a sala de cirurgia e o anestesista veio logo atrás. Deitados, se entreolharam, como uma despedida.

Acordaram horas depois sobre camas separadas. Pareceu sonho, em si, quando ele, ao abrir os olhos, encarou o teto hospitalar pálido e moveu o braço esquerdo, solto, leve, e sentiu a roupa de cama, sozinho. Virou o corpo; deitar de lado, enfim, não o fazia há muito, e nisso fitara o outro canto do quarto, e ela estava lá, virada de costas. Pensou em chamá-la, e não veio a voz. Uma enfermeira entrou no quarto e correu a cortina por entre as camas; disse-lhes que descansassem; receberiam alta na manhã seguinte.

Ele não dormira bem, e nem o café o animara; perturbava-lhe, sobretudo, a mórbida inércia do quarto. Foi que levantou, pela primeira vez, livre da outra metade. Leve, como uma pluma, caminhou até a janela, de onde vinha uma brisa fina da manhã. Ela já não estava mais no quarto; tinham a levado para um outro, dissera a enfermeira. Debruçou-se sobre o parapeito da janela, a percorrer os olhos sobre lá fora: as pessoas pareciam pesadas como nunca, em sua maioria, vinham rompendo o ar das calçadas, ao trabalho, a um encontro; angústia, nos passos, e ele apenas oco, tão leve que mal podia caminhar convicto, dar passos humanos sob ação da gravidade. E ao que seria fácil se deixar carregar pelo vento, fechou a janela; precisava deixar o hospital. Vestiu-se e desceu as escadas; procurava aprender o próprio peso, e não aprendia.

Entrou em um táxi, e pelo caminho as ruas e casas não mais tinham humor, nem verso; a vida como nunca deveria ter sido e agora estava sendo; a ausência injusta de um corpo, um corpo, que mais parecia ter sugado todo seu sangue. Ao que transpassaria um corpo estranho ao lado do próprio, sentiria um empurrão e não haveria músculo para o apreço do abraço; a pele alheia, seu grande vício, extinta; a alma sua, com os últimos meses, que passara a sorrir entrecortada, e no carinho, na ponta dos dedos bem havia um refúgio, nunca uma paz; a ânsia por liberdade, sem saber que quaisquer das coisas que a tangiam passavam pela terrível ideia de decisão, poder escolher o que se queria, ao que não há mais a paixão efêmera a guiá-lo.

Diante da mais urgente necessidade de percepção, logo a frente, estático, áspero, duro, estava o amor, o amor, o próprio, o amor não dito, não desenhado, não musicado, o amor, amor dos amores que escreveram a história e implodiram nos seres as mais veementes vontades. O amor estava claro, ao que não era mais pele, mas um vazio tocável; saía, líquido, pela cicatriz, do antebraço ao banco do carro. Chegou em casa, flutuando. Discou o número, em desespero; chamou uma vez e ela atendeu, sufocada, no cair de uma lágrima.




Arthur Wilkens

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