Na noite fria e calada, dos restos miúdos sobre a sarjeta, surgia um inseto magrelo, escravo da ausência de tudo, senão do instinto de permanecer vivo. Bicho de vida curta, e regado, ainda assim, pela esperança ao nada e ao ninguém. Esmagado fora o pobre, pela sola da moça do cotidiano efervescente, do casaco de couro, colar de rubí, dos dentes de marfim. Passos rápidos e firmes, postura clara e objetiva, andava a moça cortando a escuridão. Por dentro, nada além da verdade sobre si. Iludida, precária, miserável, jogada do trono, cuspida do mundo, e o caminhar sobre caminhos distintos. Parou no portão de um sobrado de jardim horrendo, tocou a sineta e aguardou. - ''Quem é a moça?'' , ''Vim para a festa!'' -. O casebre a recebeu, o velho sedentário a conduziu por escadas e viram-se postos em um hall aquecido pelo fogo da lareira. Cortinas precárias dançavam aos estalos da madeira, e no palco de um sofá esburacado deu-se toda a festa. E como carnal se fez a cena, das roupas da moça atiradas no fogo pelo velho, sem ela ter notado. Ele se esgueirava do rosto da moça para conter o olhar de ironia, e deitou a cabeça sobre o encosto do sofá, confortou-se, junto ao incasável luto da parceira pela sua satisfação. Adormeceu um tempo depois, sendo interrompido pela previsível esteria da madame agarrando-o pelo braço. - ''O que fizestes com minhas roupas?!'', ''Juro que não foi de minha intenção, elas caíram no fogo e não pude mais nada fazer.'' ''Deverá me pagar em dobro!'', ''É isso mesmo que queres? Ser paga em dobro por eu ter, acidentalmente, derrubado tuas roupas no fogo da lareira?'', ''E não seria digno? Ou espera que eu daqui, saia nua pelas ruas da cidade, para todos verem meu corpo?'', ''Confesso que isso não difere muito dos teus serviços.'', ''Velho imundo! Se não me pagar em dobro nesse exato momento, te ponho numa fria.'', ''Não precisamos criar problemas, venha até aqui comigo...'', ''Estou nua.'', ''Ora, não tem problema, o dinheiro é o mais importante, depois lhe consigo algum trapo para vestir'' -. Desceram as escadas e ele a conduziu a uma saleta próxima a porta de entrada do sobrado. No interior da pequena sala, descansava um cofre imenso. O velho o abriu e retirou alguns trocados. - ''Aí está, o seu pagamento.'' - A moça recebeu as notas e envergou a expressão. - ''Aqui não tem um terço.'', ''Vejamos, tome mais essas.'', ''Maldito, ainda falta o dobro.'', ''Claro, o dobro... eu já ia me esquecendo, vejamos...''. - Movimentou-se por trás do cofre e o empurrou rispidamente em direção a parede, que concedeu uma chuva de cupins na cabeça de ambos. O velho repetiu o movimento e dezenas de bolos de dinheiro caíram pelo chão. A moça, ainda nua, ajoelhou-se desesperadamente e passou a mão na maior quantidade possível. Carregando a fortuna como uma criança no berço de seus braços, esvaiu-se da saleta e chutou a porta de entrada, que não abriu. - ''Aonde está indo com o meu dinheiro? Fedelha inconfiável.'' -. O bravo suspiro do dono do sobrado amedrontou a moça, ele mancava apressadamente em sua direção, com o ódio no rosto, a bengala apontada como ameaça certeira. Correu em direção a janela o corpo belo e curvado da moça, pálido, banhou-se de desespero e resvalou no assoalho, provocando um baque que estremeceu as paredes, que jorraram cupim pela última vez. - ''Um velho depressivo em sua própria casa já não vale mais nada, veja bem... vamos ver quem é quem causa a maior notícia!'' -. Caiu sobre o corpo da jovem e a prendeu ao chão pelo pescoço. Encarou-a com os olhos fervendo, desfez o berço dos bolos de dinheiro e tomou posse de um deles. O grito de desespero da vítima ecoou pelo hall, a sua boca aberta como um poço. - ''Morre, mas engole o que estava querendo antes.'' - Possuído do bolo de dinheiro, o velho fez força para introduzi-lo pela garganta da prostituta, que já não produzia mais berro algum. Os olhos esbugalhados, os dentes cravados no dinheiro que sobrava pra fora da boca, um silêncio repentino e a morte fora anunciada. O assassino permaneceu intacto, satisfeito por um momento. Arrastou o cadáver empoeirado até a cozinha, portou a lâmina mais afiada e dela se fez cadáver parceiro, deitado sobre a vítima, o coração apunhalado, o mar de sangue, reinando o assoalho que jamais fora lavado.
Arthur Wilkens
2 comentários:
escrevi o comentário no teu blog (:
Esse texto parece pertencer à 2° geração do romantismo. Muito fúnebre, muito sórdido...
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